Imagem: Reprodução/Revista Fórum
Às vezes, penso em confrontá-lo. Por que me olha todas as manhãs, o que pretende se ainda nem acordei direito, não escovei os dentes? Por que invade minha intimidade com seu olhar inquisidor — sim, muitas vezes inquisidor?
Outras vezes observo seu rosto com cuidado. Algo ali me lembra de mim, só que bem mais velho. Meus cabelos cheios, castanhos e ondulados, nele são ralos, lisos e grisalhos, quase brancos.
Os olhos também, com duas bolsas pendentes. O nariz parece maior, a testa cheia de rugas.
O que será que o preocupou (preocupa?) tanto na vida? E o que em mim parece procurar resposta todas as manhãs?
Tem o hábito de me fazer sombra. Tudo o que faço imita. Mexo a cabeça para o lado, ele acompanha. Tento enganá-lo, fingir que vou virar para um lado e virar para o outro, mas ele não cai nessa. Nunca. É bom nisso, tenho que reconhecer.
Pelo menos essa mania dele me ajuda a fazer a barba. Mais ainda: me incentiva a fazê-la. Quando o vejo com a barba crescida, a aparência de mais velho ainda, um ar de cansaço, decido que não quero isso pra mim e busco a espuma de barbear e o aparelho.
Aí também ele me ajuda. Faço a barba e ele repete meus movimentos com precisão. Assim, consigo enxergar onde ainda pode ser melhorado, o que faço também com ajuda das mãos. Passo a mão no rosto na direção oposta à dos fios e sinto o quanto ainda devo melhorar para que o rosto fique liso, imberbe, como já tive.
Me lembro até da época em que não tinha barba alguma e usava o aparelho do meu pai, daqueles antigos com uma lâmina de barbear mesmo, porque diziam que isso incentivava o crescimento dos pelos.
Se soubesse que fazer barba iria ser tão chato, jamais teria perdido meu tempo tentando fazê-la crescer. E o homem do espelho parece concordar comigo, já que invariavelmente está com a barba por fazer, como eu.
Dou um sorriso cúmplice para ele, que corresponde. Sim, amigo, achamos chatas as mesmas coisas, mas me preocupa vê-lo sempre assim pela manhã me olhando meticulosamente, como Nietzsche para o abismo.
Um dia minha filha entrou no banheiro e me cumprimentou com um beijo no rosto. O velho sorriu, feliz, como eu. Mas uma coisa eu estranhei: minha filha também tinha uma pessoa no espelho, só que a dela era uma cópia dela e o meu é tão mais velho que eu... Por quê?
Aquilo me intrigou. Desde esse dia tento com ele uma resposta a essa pergunta. Mas ele apenas me olha, não diz nada.
Pergunto a ele o que quer. Ele me devolve com o olhar a pergunta.
Me habituei de tal modo com sua presença que já me peguei imaginando o que aconteceria se um dia eu chegasse e não o encontrasse no espelho.
O velho."
Crônica de Antonio Mello, publicada no portal da Revista Fórum.