sábado, 8 de maio de 2010

Para o Supremo, a tortura não é um crime de lesa-humanidade


Escultura de Demetrio Albuquerque, intitulada "Tortura Nunca Mais" que se encontra na junção da Avenida Mário Melo com a Rua da Aurora, no bairro da Boa Vista, Recife, Pernambuco.

Torturar, matar, estuprar, sumir com os corpos e tantas outras brutalidades e violações aos direitos humanos cometidas pelos agentes da ditadura civil-militar brasileira estão agora sob o manto de proteção do Supremo Tribunal Federal (STF).

No dia 29 de abril, a Corte Suprema decidiu improcedente a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 153 proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que reivindicava que a Lei de Anistia não se aplicasse aos crimes comuns praticados pelos agentes do regime. Ou seja, com essa decisão do STF, a Lei da Anistia deve perdoar crimes cometidos tanto por agentes da ditadura como por opositores punidos pela legislação da época. No entanto, até hoje nenhum agente da ditadura foi punido. Os punidos até hoje foram apenas os que lutaram contra o regime.

A decisão do STF, precedida do “discurso do medo” para se posicionar, é covarde. E, como disse o presidente da OAB, Ophir Cavalcante, essa Corte “perdeu o bonde da história’’ ao não revisar a legislação para que torturadores fossem punidos. “A decisão do Supremo reproduz o discurso daquela época sombria em que se vivia sob o medo e sem liberdade. Caberá à história julgar a decisão do Supremo”.

Até a Organização da Nações Unidas (ONU) criticou a decisão e pediu o fim da impunidade no Brasil. “Essa decisão é muito ruim. Não queremos impunidade e sempre lutaremos contra leis que proíbem investigações e punições”, disse a sul-africana Navi Pillay, principal autoridade das Nações Unidas para os direitos humanos.

A decisão do STF deixa o Brasil em desacordo com leis internacionais que não permitem exceções para crimes de tortura e execuções extrajudiciais. No entanto, não foi esse o entendimento do relator do caso no STF, ministro Eros Grau. Para ele, não cabia ao STF legislar sobre uma revisão da Lei da Anistia, tarefa que, segundo ele, caberia ao Legislativo. Ora, o STF "não legisla". Pelo menos é isso que diz Eros Grau. E as inúmeras vezes que a Corte suprema substituiu o Legislativo, sob o pretexto de "corrigir lacunas legais"? Ou, ainda, quando da quase supressão das prerrogativas tradicionais do presidente da República, na questão do instituto do asilo? Agora, conferir uma interpretação correta à Lei de Anistia, não beneficiando os torturadores, é "legislar"?

A vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, Victória Grabois, classificou de “lamentável” o voto do relator pelo arquivamento do processo, que foi seguido pela maioria dos integrantes da Corte. “Tínhamos esperança. Eros Grau foi preso na ditadura”, afirmou.

Assim, o Brasil continuará sem ajustar as contas com o seu passado mais tenebroso, ao contrário de países vizinhos como Argentina, Bolívia, Chile e Uruguai, que levaram à Justiça acusados de crimes contra os direitos humanos durante as ditaduras nessas nações. E, conforme afirmou em nota a Anistia Internacional, essa decisão “é uma afronta à memória dos milhares que foram mortos, torturados e estuprados pelo Estado que deveria protegê-los. Às vítimas e aos seus familiares foi novamente negado o acesso à verdade, à justiça e à reparação”.

Mesmo no Comitê contra a Tortura da ONU – formado por juristas de reconhecimento internacional, vindos de todo o mundo – os peritos independentes não pouparam críticas à decisão do STF. “Isso é incrível e uma afronta. Leis de anistia foram tradicionalmente formuladas por aqueles que cometeram crimes, seja qual for o lado. É um auto-perdão que o século 21 não pode mais aceitar”, afirmou o jurista espanhol do Comitê da ONU, Fernando Mariño Menendez. “O Brasil está ficando isolado. Parece que, como na Espanha, as forças que rejeitam olhar para o passado estão prevalecendo”, disse, insinuando uma crítica também à situação em seu país onde o juiz Baltazar Garzon pode perder seu posto diante da tentativa de abrir os arquivos da Guerra Civil, de 70 anos atrás.

A verdade é que existe um consenso entre os órgãos da ONU de que não se deve apoiar ou mesmo proteger leis de anistia. Segundo o perito contra a tortura das Nações Unidas, o equatoriano Luis Gallegos Chiriboga, “sociedades que decidem manter essas leis de anistia, seja o Brasil ou a Espanha, estão deixando torturadores imunes à Justiça que é tão necessária para superar traumas passados”.

Além disso, a principal autoridade da ONU para direitos humanos, propôs ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva a criação de uma comissão de verdade e reconciliação para discutir os crimes cometidos durante a ditadura. Para Navi Pillay, uma decisão como esta dificulta o fim dos crimes de tortura que seguem acontecendo no país.

No entanto, a decisão do STF não deve encerrar as discussões sobre o tema. O Brasil pode ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), pelo desaparecimento de presos políticos durante a Guerrilha do Araguaia (1972-1975) e pela impunidade de eventuais responsáveis. O caso tramitou por 12 anos na Comissão Interamericana de Direitos Humanos até ser encaminhado à Corte, que realizará uma audiência nos dias 20 e 21 de maio.

Mas, independente disso, o fato é que o Brasil ainda mantém os resquícios da ditadura civil-militar e o STF é o reflexo do conservadorismo das elites e daqueles que sustentaram os anos de chumbo em nosso país. A Corte apenas reafirma isso ao decidir contra o esclarecimento da verdade e a promoção da justiça. O que é lamentável é a cumplicidade de forças progressistas e democráticas a favor do “esquecimento” das atrocidades da ditadura.

Editorial da edição 375 do jornal Brasil de Fato