terça-feira, 22 de março de 2011
O que resta da ditadura
Por Bernardo Ricupero*
Às vésperas de se completarem quarenta e sete anos do golpe que instaurou a última ditadura brasileira, não é difícil afirmar que o país atual pouco tem em comum com aquele do polarizado ano de 1964. Até porque, como atestaram as eleições presidenciais do ano passado, a polarização já não existe mais. Apesar da retórica, os principais candidatos, Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB), estavam de acordo nos pontos principais: a necessidade de se manter a estabilidade monetária e a diminuição da pobreza, que têm marcado positivamente os últimos anos da vida brasileira.
Não menos importante, Dilma e Serra participaram da oposição à ditatura, ninguém duvidando de suas credenciais democráticas. Indo mais longe, o partido da atual presidente se declara abertamente socialista, suposto perigo contra o qual foi realizado o golpe de 1964. Em outras palavras, num mundo pós-Guerra Fria muitos dos medos que mobilizavam paixões e interesses já não têm maior significado.
O próprio Brasil mudou significativamente nesse período de quase meio século. Apesar da persistência de enormes desigualdades sociais e regionais, o país continuou a se urbanizar, sua população envelheceu e, de maneira geral, vive melhor. Não é mero acaso que muitas dessas realizações, como a criação de uma democracia de massas, a universalização do acesso à educação primária e à saúde pública, são feitos aos quais se chegou depois do afastamento dos militares do poder.
No entanto, num ponto fundamental – o enfrentamento dos crimes cometidos pela ditadura – pouco se avançou. Nisso, o Brasil tem sido bem mais tímido do que outros países que tiveram regimes de exceção, entre eles, nossos vizinhos Argentina, Uruguai e Chile. Na Argentina, leis como a de Ponto Final e a de Obediência Devida foram consideradas inválidas, o que abriu caminho para o julgamento de militares e mesmo dos membros das juntas militares que governaram o país. No Chile, apesar da persistência da influência militar, que se faz sentir inclusive na legislação, o outrora todo poderoso ditador Augusto Pinochet não escapou de um julgamento.
No Brasil, em compensação, ao se lidar com nossos “anos de chumbo”, se preferiu oferecer principalmente reparação material às vítimas da ditadura. Só mais recentemente, outras medidas, como a publicação, pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, do livro “Direito à verdade e à memória”, começaram a promover, ainda que timidamente, a divulgação do que ocorreu nos porões do regime militar.
Ou seja, em termos de justiça de transição, pouco avançamos no que concerne à busca da verdade, à justiça e à reforma das instituições, preferindo o caminho aparentemente menos traumático das reparações. É significativo que, com algumas idas e vindas, esse tenha sido um caminho trilhado em governos de duas vítimas da ditadura: Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.
Para além do Executivo, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou recentemente que os atos de tortura cometidos durante a ditadura seriam cobertos pela Lei da Anistia. Mesmo que a decisão tenha sido posteriormente condenada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, já que como crime contra a humanidade a tortura não pode ser objeto de anistia, ela indicou o quão fortes são as resistências para que se enfrente as atrocidades cometidas durante o regime militar.
Diante da timidez brasileira para lidar com nosso passado autoritário, provoca alívio os sinais dados pela ex-presa política Dilma e sua secretária de Direitos Humanos, Maria do Rosário, de que pretendem levar adiante a instalação de uma Comissão da Verdade. Mesmo assim, o projeto de lei para a criação de tal Comissão, encaminhado já no governo Lula, está emperrado na Câmara dos Deputados, em razão dos partidos não indicarem representantes para analisa-lo.
Ou seja, juntando-se ao Executivo e ao Judiciário, o Legislativo também dá sinais de que não quer mexer no “vespeiro” da ditadura. Em termos mais profundos, o Estado brasileiro incorre numa prática com marcas profundas em nossa história e mesmo cultura política: a da negociação e conciliação “pelo alto”. Não se pode, porém, imaginar que tal atitude não afete a qualidade da democracia que se está construindo no país, até porque a pouca disposição de se enfrentar o passado torna mais difícil superá-lo
*Bernardo Ricupero é cientista político e professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo)
Escreveu, entre outros livros, "Sete lições sobre as interpretações do Brasil' (Editoria Alameda).
O texto acima foi retirado da coluna Opinião, do site Yahoo! Brasil.