segunda-feira, 9 de maio de 2011
USA um país democrático?
Direitos dos prisioneiros de Guantánamo
Um silêncio crepuscular
Esquecemo-nos que o primeiro passo para acabar com o Estado de direito, onde quer que ele exista, é permitir a sua violação impune, seja onde for e contra quem for. Começa sempre pelo outro, pelo mais fácil, pelo mais fraco, pelo vencido, pelo indefeso, mas nunca se sabe onde acaba. Na base americana de Guantanamo, onde irão ser interrogados, os presos são encerrados, segundo a elucidativa expressão dos jornais, em "jaulas individuais" com uma "cobertura para o sol".
Segundo declarações do Governo dos EUA, os detidos não são considerados "prisioneiros de guerra", não estando, por isso, sob a proteção da Convenção de Genebra. A sua detenção não foi ordenada por nenhuma autoridade judicial conhecida, as acusações contra elas formuladas são secretas e o regime legal da sua captura é inexistente: não sendo prisioneiros de guerra, são indivíduos presos e sequestrados para o território dos EUA por decisão unilateral das forças armadas e das polícias daquele país, sem cobertura jurídica, nacional ou internacional, de qualquer espécie. Manda quem pode.
Talvez por isso, os sujeitam a um regime prisional vexatório e revoltante. Os presos deslocam-se do Afeganistão para Guantanamo algemados de pés e mãos, atados às cadeiras dos aviões durante os 12.000 quilómetros de vôo, alimentados pelos guardas e fazendo as suas necessidades para uma espécie de arrastadeira. Para não barafustarem, são previamente anestesiados. Salvo o atual requinte tecnológico dos dias de hoje, dir-se-ia termos regressado aos transportes dos navios negreiros do século XIX.
Na base americana de Guantanamo, onde irão ser interrogados, os presos são encerrados, segundo a elucidativa expressão dos jornais, em "jaulas individuais" com uma "cobertura para o sol". Escusado será dizer que durante estes interrogatórios os detidos não terão direito a assistência de advogados, nem sequer a visitas de familiares, aliás um tanto dificultadas pelo fato de o campo prisional estar quase nos antípodas do Afeganistão. Não é de supor que a CIA ou o FBI permitam visitas da Amnistia Internacional ou de outros organismos de defesa dos direitos humanos. Tudo indica que os interrogatórios vão correr como as prisões: sem regras e bem longe de olhares ou ouvidos indiscretos. Registe-se que durante o conflito no Afeganistão surgiram nos "media" internacionais várias alegações de participação de agentes policiais ou militares dos EUA em interrogatórios de suspeitos com recurso à tortura.
Provavelmente, findo o inquérito policial, o Governo dos EUA nomeará um tribunal militar especial para Guantanamo, um daqueles criados pela legislação especial decretada pelo Presidente e cujo regime só foi muito limitadamente moderado pelo Congresso. Um julgamento militar com juizes e júri de nomeação governamental, em que a acusação não teve que explicar como arranjou as provas, em que o réu não tem praticamente direito de defesa e em que a sentença pode ser a pena de morte, a culminar um rápido e sumaríssimo processo.
Para os argumentos mais primários que já se adivinham a legitimar toda esta cadeia de violações grosseiras e impunes dos direitos humanos mais elementares, convirá esclarecer desde logo que, em nenhuma circunstância, a extrema gravidade dos crimes de que estes indivíduos vêm, aparentemente, acusados, pode desculpar o abuso, o vexame e a ilegalidade que contra eles o Governo dos EUA se permite exercer. Por uma razão singela: é isso que separa a barbárie, do Estado de direito, é isso que separa o terrorismo, da democracia, a opressão, da liberdade. Os cativos afegãos à guarda dos EUA têm direitos que devem ser respeitados, independentemente dos crimes de que sejam suspeitos: o direito à presunção de inocência até sentença judicial condenatória; o direito a conhecerem as acusações de que são alvo; a ter assistência jurídica, a receber visitas, a não serem objeto de torturas, a ser tratados com dignidade, a ter um julgamento justo que lhes permita defenderem-se. Direitos que, seguramente, o regime taliban ou o da Arábia Saudita jamais reconheceram aos seus súditos. Mas se se fizer o que eles fazem, então, em nome de que valores e de que interesses retaliaram os EUA? Se o pretexto de combater o terrorismo e a barbárie pode legitimar a ilegalidade e a violação dos direitos fundamentais, o que é que, verdadeiramente, passará a distinguir um campo do outro?
Por isso, o silêncio - o silêncio cúmplice, é preciso dizê-lo - que, pelo menos entre nós, rodeia o anúncio destas situações, me arrepia a espinha. O silêncio não é só uma demissão moral perante a força bruta e a política de fato consumado livremente praticada pelo império reinante. O silêncio é aceitar a negação do carácter universal dos direitos humanos. É admitir que há categorias de pessoas (por exemplo, os suspeitos de "terrorismo") cujos direitos podem ser legitimamente violados. Uma espécie de escória definida em função de certas práticas sociais, políticas ou religiosas que não gozariam das garantias aplicáveis às "pessoas normais". Só que os grupos de excluídos dos direitos fundamentais, a partir do momento em que se aceita a exclusão, podem ser extensivamente definidos, isto é, criminalizáveis, ao sabor das relações de força e de poder. Admitindo o princípio, ao menos na prática, quem pode garantir que amanhã não sejam os "comunistas", ou os homossexuais, ou as testemunhas de Jeová? Como ontem foram os judeus? Na realidade, esquecemo-nos depressa demais que foi exatamente ao abrigo da negação da universalidade dos direitos do homem, só que estabelecendo critérios raciais de discriminação, que o nacional-socialismo auto-legitimou o direito de oprimir, escravizar e até exterminar os que definiu como "Untermenschen" (sub-humanos). Esquecemo-nos que o primeiro passo para acabar com o Estado de direito, onde quer que ele exista, é permitir a sua violação impune, seja onde for e contra quem for. Começa sempre pelo outro, pelo mais fácil, pelo mais fraco, pelo vencido, pelo indefeso, mas nunca se sabe onde acaba. Se hoje não formos capazes de defender os direitos fundamentais dos afegãos ou dos árabes acusados da prática de crimes de terrorismo, o terrorismo de Estado, ou outro, acabará por vencer. Basta olhar para o que se passa no Estado de Israel.
É por isso que o silêncio se ouve demasiado em questões como esta. É por isso - como já se percebeu quando o FBI admitiu a possibilidade de recorrer à tortura - que ele objetivamente prepara a aceitação do inaceitável. Já não falo da omissão das boas almas do Ocidente, dos generais de sofá e de outras conhecidas variantes domésticas do belicismo. Falo das seções da Amnistia Internacional, dos juristas democratas, das organizações de defesa dos direitos humanos, dos fóruns defensores da justiça e das liberdades. Será que em Guantanamo não se passa nada?