O lugar que o Vasco da
Gama ocupa na elite do futebol brasileiro tem a marca gloriosa do time
conhecido como os camisas negras que, em 1923, com uma campanha arrasadora (11
vitórias, dois empates e apenas uma derrota), conquistou o primeiro titulo de
campeão carioca de sua História. Com o uniforme preto – ainda sem a faixa
diagonal – de gola branca e com uma cruz vermelha, semelhante à da Ordem de
Cristo, no lado esquerdo do peito, Nélson, Leitão e Mingote; Nicolino,
Claudionor e Artur; Paschoal, Torterolli, Arlindo, Cecy e Negrito foram os 11
vascaínos abusados, alguns deles negros e mulatos, que quebraram
definitivamente a hegemonia de América, Fluminense, Botafogo e Flamengo, clubes
nos quais atuavam somente jogadores brancos. Esses pioneiros deixaram claro,
com a conquista do Carioca daquele ano, que o Vasco chegava não apenas para se
transformar em um dos gigantes do esporte nacional, mas, sobretudo, para romper
preconceitos e ajudar o futebol a ganhar dimensão nacional. Até a ascensão do
Vasco havia, no Rio, uma linha divisória que separava os grandes clubes da Zona
Sul – Fluminense, Botafogo e Flamengo – das pequenas agremiações que se
espalhavam pelos subúrbios da cidade. O máximo que os grandes permitiam à Zona
Norte, até aquele momento, era ter o América em seu convívio, como o
representante da elite tijucana. As grandes partidas se realizavam no ambiente
refinado, de maneirismos ingleses, estádio do Fluminense Football Club, em
Laranjeiras, diante de plateias que exibiam chapéus, bengalas e vestidos longos.
Mas, no outro lado da cidade, nos campos
suburbanos, o Vasco iniciava sua arrancada. Em apenas seis anos os vascaínos
deixaram os degraus inferiores e chegaram à Primeira Divisão da Liga
Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT), prontos para disputar e ganhar o
campeonato de 1923. A explicação desse rápido sucesso estava nos negros,
mulatos e brancos, pobres e bons de bola, que o Vasco havia recrutado nos
campos de subúrbio, numa época em que o futebol era oficialmente amador. Para
mantê-los no time, comerciantes portugueses os registraram como empregados em
seus estabelecimentos. Era a maneira de burlar a exigência do amadorismo, que
estava com os dias contados. Registros comprovam que o pagamento a jogadores já
era prática corrente em 1915. Junto com as vitórias sobre os pequenos e os
representantes da elite (Fluminense, Flamengo, Botafogo e América, vencidos em
série) surgiu o apelido de camisas negras, dado pela imprensa àquele time da
Zona Norte, que ia adquirindo fama de imbatível. A equipe tinha como técnico o
uruguaio Ramón Platero, que chegara ao Rio com a novidade da preparação física.
Na campanha irresistível dos camisas negras, o 8 de julho de 1923 viria a se
tornar uma data histórica. Nesse dia, o Vasco entrou no campo de Laranjeiras
para enfrentar o Flamengo, na terceira rodada do returno. Derrotados
anteriormente pelos vascaínos, Fluminense, Botafogo e América uniram suas
torcidas à flamenguista. Todos contra um, era a hora da revanche. A partida foi
disputadíssima. O Flamengo vencia por 3 a 2, quando nos minutos finais o
ponta-direita Paschoal marcou o que seria o gol de empate. Mas o juiz Carlito
Rocha, que mais tarde seria presidente do Botafogo, anulou o gol, que para
muitos foi legítimo. A derrota não impediu que o Vasco levasse a taça de
campeão, com vitória de 3 a 2 sobre o São Cristóvão, depois de estar perdendo
por dois gols. Como era de hábito no time comandado por Ramón Platero, a virada
aconteceu no segundo tempo. O medo de que os camisas negras repetissem a
façanha no ano seguinte levou os grandes clubes a abandonar a Liga
Metropolitana, em 1924. Fluminense, Botafogo e Flamengo, com apoio do Bangu e
do São Cristóvão, criaram a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos
(AMEA). Os estatutos da entidade continham cláusulas absurdas, nas quais ficava
evidente a falsa nobreza do alegado espírito amador. O impedimento à inscrição
de jogadores sem profissão definida e analfabetos tinha como alvo a vitoriosa
equipe do Vasco, que reunia negros e pobres. Assim como o veto ao ingresso na
AMEA de clubes que não tivessem estádios.
Depois de atropelar os adversários no ano anterior, em
1924 o Vasco já era o inimigo número 1 das demais torcidas cariocas. Um rival a
ser batido, de qualquer maneira. E já que era difícil batê-lo em campo, os
dirigentes dos clubes rivais resolveram investigar as atividades profissionais
e sociais dos camisas negras, uma vez que o futebol ainda era amador e os
jogadores não podiam receber salário por praticarem o esporte. Um verdadeiro
golpe para tirar o Vasco das disputas.
Na verdade, o que não agradava os adversários era a origem
daqueles jogadores: um time formado por negros, mulatos e operários,
arrebanhados nas áreas pobres da cidade do Rio de Janeiro.
Depois de esgotadas todas as possibilidades de retirar
o Vasco da disputa, por intermédio do regulamento da Liga Metropolitana, os
adversários apelaram para a criação de uma nova entidade, a Associação
Metropolitana de Esportes Athléticos (AMEA) e recusaram a inscrição dos
vascaínos. Segundo os dirigentes adversários, o time cruzmaltino era formado
por atletas de profissão duvidosa e o clube não contava com um estádio em boas
condições.
Nesse contexto, a AMEA solicitou ao Vasco que excluísse doze de
seus jogadores da competição que, não por coincidência, eram todos negros e
operários. O Club de Regatas Vasco da Gama recusou a proposta prontamente. E
através de uma carta histórica (imagem) de José Augusto Prestes, então presidente
cruzmaltino, o Gigante da Colina mostrou sua total indignação à discriminação
racial: “Estamos certos de que Vossa Excelência será o primeiro a reconhecer
que seria um ato pouco digno de nossa parte sacrificar, ao desejo de filiar-se
à Amea, alguns dos que lutaram para que tivéssemos, entre outras vitórias, a do
Campeonato de Futebol da Cidade do Rio de Janeiro de 1923 (…) Nestes termos,
sentimos ter de comunicar a Vossa Excelência que desistimos de fazer parte da
AMEA”. Vítima do racismo de seus adversários, restou ao Vasco disputar, com
outros times de menor expressão, o campeonato da abandonada Liga Metropolitana
de Desportos Terrestres.
Nesse dia histórico, o futebol brasileiro começou a ser do povo.
Começou a forjar a tolerância, traço fundamental da cultura brasileira, que
possibilitou a diversidade e a riqueza racial e cultural que vivenciamos hoje.
No ano de 1923 começou a ser possível conhecermos Pelé, Garrincha, Didi,
Barbosa, Romário e tantos e tantos outros talentos inigualáveis do nosso
esporte. E o Vasco deu o seu mais importante passo para ser o gigante no qual
ele se tornou.
Uma agremiação que lutou sempre contra qualquer tipo de discriminação.