segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Porque eu sou Charlie

Dante Alighieri, no Canto XXVIII, do Inferno, traça uma caricatura de Maomé infinitamente mais brutal e ofensiva do que jamais nenhum desenhista contemporâneo ousou fazer. Ao chegar à região mais profunda do oitavo círculo do inferno, onde penavam as almas daqueles que, em vida, haviam semeado discórdias (para os católicos italianos, era o que Maomé tinha feito), Dante se depara com homens com membros retalhados, cabeças mutiladas, intestinos pendurados. Entre eles, destaca-se Maomé: Già veggia, per mezzul perdere o lulla, Com’io vidi un, così non si perdugia, Rotto dal mento infin dove si trulla: Tra le gambe pendevam le minugia; la corata pareva e ‘l tristo sacco che merda fa di quel che si trangugia. Tradução literal: Assim como um barril, que o meio perde ou o fundo, Eu vi um homem (não se fura assim um barril), Rasgado desde o queixo até onde se digere: Entre as pernas pendiam os intestinos; Os pulmões apareciam expostos, e também o triste saco (estômago) que transforma em merda o que se come. * Não sei como nenhum jihadista não se lembrou de fuzilar membros das incontáveis associações de amantes da poesia de Dante. Trata-se um ataque “terrível” ao principal ídolo do islamismo. Mas é arte, é expressão. Dante não merece morrer por causa disso. Ninguém merece morrer por causa de uma expressão artística. A arte não precisa ter razão ou ser politicamente correta para ter direito à existir. Não precisa ser boazinha ou deixar de ofender os outros. Ela tem direito de existir, porque isso está expresso nos artigos 18 e 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da qual o Brasil é um entusiasta signatário. * O assunto é muito sério, porque envolve não apenas uma discussão radical sobre liberdade de expressão, mas sobre o direito à vida! Uma discussão radical, profunda e embebida em sangue. O Charlie Hebdo foi acusado, nas redes sociais brasileiras, de racismo, islamofobia, e, de maneira geral, de extrapolar os limites da “decência” política. Na França, a extrema-direita, que sempre foi vítima das charges do Charlie Hebdo, iniciou o movimento “je ne suis pas charlie” (eu não sou charlie). Aqui no Brasil, curiosamente, parte da esquerda tomou partido contra Charlie Hebdo. Leonardo Boff publicou texto de um “padre”, também intitulado “Je ne suis Charlie Hebdo”, que me provocou calafrios. No texto, o autor diz que condena “os atentados em Paris, condeno todos os atentados e toda a violência, apesar de muitas vezes xingar e esbravejar no meio de discussões, sou da paz e me esforço para ter auto controle sobre minhas emoções…” (…) “Não acho que nenhum dos cartunistas “mereceu” levar um tiro, ninguém o merece, acredito na mudança, na evolução, na conversão. Em momento nenhum, eu quis que os cartunistas da Charlie Hebdo morressem. Mas eu queria que eles evoluíssem, que mudassem… Ainda estou constrangido pelos atentados à verdade, à boa imprensa, à honestidade, que a revista Veja, a Globo e outros veículos da imprensa brasileira promoveram nesta última eleição.” O autor queria que eles “evoluíssem, que mudassem”… Como é que é? Falar isso de um chargista assassinado covardemente com vários tiros, me parece uma falta de noção absoluta. A esquerda vai adotar a posição de um autor que queria que os cartunistas do Charlie “evoluíssem”? (Correção: Boff corrigiu seu post, o autor não é um padre, é sujeito chamado Rafo Saldanha. Não faz diferença nenhuma). Isso é o que podemos chamar de “esquerda burra”. Além do mais, quando alguém sente necessidade de repetir, tantas vezes, que “em momento nenhum, eu quis que os cartunistas da Charlie Hebdo morressem”, é porque no fundo sabe que emitirá uma opinião sectária e idiota. Nenhum texto inteligente precisa repetir que “nenhum dos cartunistas mereceu levar um tiro”! Ora, quanto as acusações de racismo, esse texto do Kiko Nogueira, no Diario do Centro do Mundo, dá uma resposta quase definitiva. As charges supostamente racistas contra uma ministra negra do governo socialista francês, na verdade eram uma defesa de Charlie à uma acusação a ela feita por um político da Frente Nacional, extrema direita francesa. A ministra agradeceu o Charlie e hoje é uma das estão na linha de frente em defesa de sua memória. As charges contra um negro, também mostradas como racistas, não eram contra a negritude do sujeito, mas sim contra um humorista antissemita, amigo do Le Pen, conhecido por seu reacionarismo de direita, e que, por acaso, é negro. Para mim, o racismo está na ignorância de não entender que negros também podem ser alvos de charges, não por serem negros, mas por suas ideias e posição. Outras capas estão sendo veiculadas, sem contextualização, e até mesmo com tradução apressada, num furor bizarro para descrever um jornal conhecido por suas opiniões progressistas como “racista” ou “preconceituoso”. Luis Fernando Veríssimo, nosso último cronista de esquerda, afirma que o seu conceito de cidade civilizada é aquela onde se pode sair de madrugada e encontrar um lugar para comer uma sopa, e… comprar um jornal como Charlie Hebdo. Veríssimo é habitué de Paris há décadas, humorista e desenhista, acompanha desde o início o trabalho do Charlie Hebdo. Diz que é um jornal “nitidamente de esquerda, mas que nunca a livrou das suas gozações. Seu alvo preferencial é a direita religiosa francesa”. Seria, evidentemente, uma outra violência isentar Charlie Hebdo de críticas. Há charges pesadas, agressivas, quiçá de mau gosto. Não deve ser fácil manter um jornal impresso independente, que não explora concessão pública, como a Globo ou o SBT, não usufrui de nenhum monopólio, e quase não tem publicidade. Há uma tendência pelo escândalo, para chocar o politicamente correto, que suponho ser inerente à sua estratégia de sobrevivência comercial. Entretanto, devemos tomar cuidado com uma coisa. Mesmo que o jornal fosse de extrema-direita, mesmo que as acusações de racismo fossem verdadeiras, mesmo que o objetivo do jornal fosse humilhar as minorias. Mesmo assim, errados estariam aqueles que os mataram. Não o jornal. O crime capital, em qualquer religião, é o assassinato, não a ofensa. A liberdade de expressão pressupõe, evidentemente, o direito à qualquer um de dizer o que quiser. Mesmo as coisas mais horríveis. Esta liberdade pode ser mais ou menos regulada pelo Estado, segundo a legislação de cada sociedade. Mas jamais, em sociedade nenhuma, ela pode ser regulada pela morte e pelo terrorismo político. Aqui no Brasil, Sheherazade, apresentadora do SBT, meio que defendeu o direito ao linchamento, quando alguns rapazes brancos de classe média acorrentaram um jovem negro a um poste, no Flamengo (meses depois, os mesmos rapazes foram presos por tráfico, mas sobre isso a Sheherazade não falou), e houve um movimento para que o SBT não mais recebesse verbas federais. Não se tratava de censurar Sheherazade, mas de impor um limite civilizatório: ela pode falar o que quiser, mas então que não receba dinheiro público para defender linchamentos. Entretanto, estávamos falando de uma concessão pública, na TV aberta. O Charlie Hebdo é um jornal impresso, que vive de assinatura. Poucas semanas antes da tragédia, eles estavam pedindo ajuda financeira aos leitores. Não eram nenhum tentáculo do “imperialismo americano ou europeu”. Eram jornalistas e desenhistas tentando ganhar honestamente a vida, usando a criatividade. Eu entendo o politicamente correto. Entendo também o politicamente incorreto. São ambos necessários, e face da mesma moeda. Precisam conviver em harmonia. Sem o politicamente incorreto, a vida seria insuportável. Sem o politicamente correto, idem. Alias, sem o politicamente correto, o politicamente incorreto perderia a graça. Mas é preciso traçar uma linha divisória entre a civilização e a barbárie. Porque é mais que uma linha. É um abismo, a separar a vida e a morte. Matar alguém por causa de um desenho é uma barbaridade tão grotesca que deveria congelar imediatamente qualquer crítica que tivéssemos àquele desenho. Eu sou um blogueiro, e vivo também da criatividade. Um título, um desenho, um esforço para ser polêmico, pode causar confusão, pode ofender sensibilidades. As pessoas têm o direito de se sentirem ofendidas, com ou sem razão. Charges tucanas ofendem profundamente petistas. E vice-versa. Charges anti-católicas ofendem profundamente católicos. Faz parte do jogo. Os ofendidos tem o direito de usar a Constituição para responder à ofensa. Tem o direito de reagir com emoção, com xingamentos. Podem organizar manifestações e protestos. Em casos extremos, podem até pichar a fachada do jornal e revista. Mas não tem o direito, evidentemente, de reagir com violência física contra desenhistas e jornalistas. Nem de justificar a violência física ou reduzir a sua gravidade com argumentos falsamente políticos. Quando se mata um desenhista, ataca-se toda a sua família, todos os seus amigos, todos os desenhistas do mundo, seja qual for a sua ideologia. Dito tudo isso, falemos um pouco sobre a manifestação ocorrida em Paris, ontem. Quase 4 milhões de pessoas! A maior manifestação pela paz da história da França. A maior do mundo! Aqui no Brasil, tentou-se esnobar a manifestação por causa da presença do primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Ora, ele era um entre 4 milhões! E estava ao lado de M. Abbas, o presidente da Autoridade Nacional Palestina. Os dois, lado a lado, criam um símbolo que constitui um belíssimo gesto de paz. Não, o terrorismo não está resolvido. A paz não está resolvida. O mundo não ficou uma maravilha depois da marcha em Paris. Mas tudo é um processo. A extrema-direita francesa não teve presença significativa na marcha em Paris. A Marie Le Pen teve que fazer a sua própria caminhada, mixuruca, numa cidadezinha francesa onde tem votos cativos. Uma marcha puxada pela polícia. Entendo que setores um pouco viciados da esquerda brasileira, essa esquerda de sofá, confortavelmente instalada num sectarismo fácil, tenham reticência contra manifestações espontâneas, com bandeiras difusas, que terminam em quebra-quebra e que são manipuladas facilmente pela mídia e transformadas em arma política para se criar uma atmosfera de instabilidade. Entendo, também já as critiquei, mas também já me autocritiquei por esse tipo de receio excessivo. O que vimos em Paris, todavia, neste domingo, foram 4 milhões de pessoas marchando com um foco específico, pela paz. A paz é a única bandeira realmente universal, transversal a todas as ideologias, que poderia reunir 4 milhões de pessoas numa mesma passeata. Não houve um incidente. Não apareceu um único black bloc. Isso é lindo! O debate sobre a marcha foi perpassado pela crítica à sua suposta hipocrisia. “Morreram 2 mil nigerianos hoje, porque ninguém marcha por eles?” Ora, uma marcha pela paz significa uma marcha contra todo o tipo de guerra, contra todo o tipo de violência, contra todo tipo de terrorismo, seja aquele feito por fanáticos religiosos seja o terrorismo de Estado. Não podemos cair nesse tipo de sofisma populista barato! Também precisamos conversar um pouco sobre o islamismo. Criticar o islamismo não é “islamofobia”. O Islã precisa ser criticado, e precisa aprender a ser criticado, inclusive duramente, com sarcasmo, acidez e violência simbólica. Como todo radicalismo religioso, o islâmico é retrógrado, brutal, discrimina mulheres, gays, minorias e “infiéis”. No Estado Islâmico (Isis), quase 4 ou 5 milhões de mulheres vivem sob o risco de amputação genital, porque é nisso que os radicais do Isis acreditam, que a mulher não pode ter prazer. Como assim não podemos criticar isso? É islamofobia fazer uma crítica radical a esse tipo de fanatismo brutal e desumano? Há um agravante. O radicalismo islâmico experimenta, há anos, uma perigosa expansão. O Ocidente, sobretudo os EUA, têm culpa nisso. Os países mais laicos do Oriente Médio, Iraque e Líbia, nos quais havia separação rigorosa entre religião e política, e onde as mulheres gozavam de plena liberdade civil, foram invadidos e se tornaram, hoje, focos de fanatismo religioso e terrorismo. A mesma coisa vale para o Irã. . O Irã tinha um governo laico e democrático, chefiado pelo primeiro-ministro Mohammad Mossadegh, que nacionalizara as empresas petrolíferas. Os EUA não gostaram e patrocinaram um golpe de Estado, que resultou na ditadura pró-ocidental do Xá Reza Pahlevi (1953-1979), que destruiu a democracia, a liberdade de expressão, o laicismo, criando o caldo de cultura política para um contra-golpe dos aiatolás, a única força política nacional ainda organizada. Antes da marcha deste domingo, o recorde deste tipo de manifestação pertencia à marcha contra a guerra no Iraque. As guerras do Ocidente, seus golpes, são quase sempre profundamente antipopulares. Por isso, são organizados em segredo e são alimentadas à base de mentiras veiculadas pela mídia. Sempre que a política internacional é debatida à luz do dia, ela melhora. Por isso a importância da marcha em Paris. Ela obriga os dirigentes a tirar o debate dos porões dos serviços secretos e levá-lo à opinião pública, à verdadeira opinião pública, não aquela viciada e corrompida por uma imprensa mantida sempre à beira da falência. Aliás, é interessante observar que o principal ataque às populações árabes, palestinas, africanas, e a pobres de todo mundo, jamais aconteceu nas páginas de um jornalzinho de humor atrevido e esquerdista, como era o Charlie Hebdo, e sim nos grandes jornais sérios, que não publicam charges ofensivas, que mantém um comedimento politica e rigorosamente correto. Entretanto, interessa aos povos que as mudanças se dêem de maneira pacífica e democrática. A violência apenas interessa aos barões da indústria bélica. A eles, e somente a eles, interessa o terrorismo, porque força os Estados a aumentarem seus gastos militares. Para a direita, de maneira geral, o terrorismo oferece uma série de vantagens. Ele ajuda a abafar o debate político sobre direitos sociais. Afinal, quem se interessará por discutir esse tipo de coisa diante da ameaça à vida de inocentes? Diante da ameaça da barbárie e do caos? Para a maioria, para a esquerda, o terrorismo não oferece vantagem nenhuma. Diante do terrorismo, a esquerda encolhe eleitoralmente, e se intimida politicamente. Mais uma razão para não cometer erros primários, como fazer críticas, algumas delas levianas, outras até mesmo injustas, ao trabalho de desenhistas mortos barbaramente por fanáticos da direita islâmica. Essas críticas, francamente, não tem importância neste momento, e confundem o debate. Fica parecendo falta de solidariedade, falta de respeito, falta de noção, falta de amor à liberdade. Devemos focar todas as energias na análise das causas que levaram a um ato tão bárbaro. Entre elas, seguramente, está a promoção do ódio, de maneira que não adianta apenas entender a geopolítica. É preciso reagir sem ódio, sem a tolice de sair distribuindo culpas. Cabe, sobretudo, não culpar as vítimas! Objetividade, calma, lucidez, tolerância, inteligência, cultura são as únicas armas que possuímos para combater a indústria da guerra, da ignorância, do fanatismo e da morte. Original publicado em O Cafezinho